A Linha do Vale do Vouga

13-02-2009 00:17

 

Trilhos de Ferro em Leitos de Sedução

 

 

A Linha do Vale do Vouga

 

I Parte

 

Seria, certamente, um rei agastado aquele que no dia 23 de Novembro de 1908 acenou às varinas, de canastras à cabeça, do cimo do laudau real, na marulheira localidade de Espinho.

O cansaço da longa viagem, desde a capital até às margens do Douro, já se tinha desvanecido, para o qual muito tinham contribuído os retemperadores passeios diletantes pelos jardins românticos da Macieirinha, embora, em abono da verdade se deva acrescentar que, no momento preciso da chegada, toda aquela cerimónia a que haveria de presidir, o rígido protocolo real e os ares nortenhos lhe tivessem parecido algo enfadonhos, quiçá mortificantes.

Há cinco dias que tinha chegado à cidade do Porto, com poiso escolhido na Rua dos Quartéis, onde desentorpeceu o corpo dorido do constante balancear da carruagem da locomotiva, uma Henschel & Sohn potentíssima, a convite do duque do Porto, irmão do rei D. Carlos. Mais tarde, haveria de rumar, então, até à Quinta da Macieirinha, para se espreguiçar na casa de campo que fora do ilustre Carlos Alberto de Sabóia.

Um dos momentos altos, para impressionar os forasteiros da modernidade da Invicta, tinha sido a excitada travessia da imponente e robusta ponte Maria Pia, nome da sua zelosa avó, Dona Maria Pia de Sabóia, filha do rei Victor Emanuel II, e a quem, diga-se, se aplicam os mesmos adjectivos usados para a Maria Pia de ferro.

 Apesar das mordomias a que estava habituado, sua alteza não era diferente de qualquer outro dos comuns mortais, por isso, também sentira as mesmas dores nos costados e a mesma indisposição. Não se sabe, contudo, se a dita indisposição que lhe revolvera as entranhas reais se devia ao balanço insensível do vagão da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses ou aos excessos de ruralidade de um Portugal distante, acordado por um comboio que, insistentemente, lhe lembrava, pelo retinido do apito e pela cauda da fumaça, que o desenvolvimento havia chegado, mesmo que ele, o camponês rústico, se limitasse a levantar, levemente, a cabeça e a olhar, embasbacado, suspenso de enxada nas mãos, para aquela máquina escura e infernal. Depois, lembrando-se da sua pequenez, haveria, calmamente, de levar o lenço amarelado à testa molhada, estendendo o momento de descanso ou de pensamento, antes de desferir mais uma pequena quantidade de cuspo sobre a mão direita, esfregando-a, de seguida, sobre a esquerda, para que o cabo rugoso não limasse, ainda mais, as mãos gretadas da pobreza. Neste hiato de vanguarda, o homem sonhava, também ele, a dar o salto para a fartura de outras terras, que lhe abonassem uma mesa farta e uma criançada feliz. Primeiro, haveria de vir a cidade, com as suas fábricas e serviços; depois, quem sabe, o desejado Brasil. Mas o comboio passava e com ele a ilusão. Ficava o fumo escuro a menear-se no ar e o cheiro do carvão, a irritar os olhos alagadiços daquela mescla de suor e lágrimas.

Para D. Manuel, a paisagem, em boa verdade, era órfã de eléctricos a tilintarem nos carris, das carruagens de trote vivo e dos passeantes da Baixa lisboeta, com os seus cafés a regurgitarem de clientes ao fim da tarde. Também não havia semelhanças com as coutadas de Vila Viçosa, nem com o luxuriante Palácio da Pena, na romântica serra de Sintra, nem, já agora, com o próprio palácio da Ajuda. No olhar que se espelhava na janela embaciada, por momentos cruzado com o do camponês, vislumbrava-se, mais, uma grande incerteza quanto ao futuro de Portugal.

            Notava-se outra cor no rei, outros ares, comentavam os camareiros reais, mas a sua juventude, de vigorosas 18 primaveras, não deixava encobrir a tristeza que o havia tomado.

Ao lado de Dona Amélia de Orleães, sua mãe, D. Manuel II esforçava-se por corresponder a uma população desejosa de o ver a ele e à rainha, no fundo, ao séquito real. A curiosidade era enorme, uma vez que aquelas gentes nunca tinham visto tamanho aparato, mais ainda depois do que acontecera no Terreiro do Paço, em Lisboa. Assim, por entre rumores que davam o rei como desfigurado, o vulgo acotovelava-se para chegar o mais próximo possível da comitiva. Os que conseguiam, à força de músculos e impropérios, lá se pasmavam perante a riqueza das roupagens e, se calhar desiludidos, a imaculada face pueril do jovem monarca. Afinal, o filho mais novo de D. Carlos apenas tinha trazido, em meses anteriores, um braço ao peito.

            Era bem verdade, para D. Manuel II, que essa tarde fatídica de 1 de Fevereiro de 1908 tinha de ser ultrapassada, mas a imagem do rei D. Carlos I, seu pai, e do príncipe herdeiro Luís Filipe, seu irmão, a serem assassinados em pleno Terreiro do Paço não se lhe desprendia do pensamento. Agora ali, rodeado, à distância, por aquela população maioritariamente campesina, via-se, também ele, a ser alvo de um atentado, talvez por parte de um elemento infiltrado da Carbonária. Mas que receios eram esses, que medos poderiam advir de uma população que lhe dirigia urras de alegria, que temores de um povo que queria, sobretudo, melhores condições de vida, de forma a suavizar a pobreza generalizada?

Na verdade, ele estava ali para isso mesmo, para inaugurar o primeiro troço da linha do Vale do Vouga. Por isso, a população estava radiante. Era dia de festa pela presença de sua alteza, mas essencialmente porque as gentes que habitavam as terras férteis do Vouga, e seus afluentes, poderiam muito mais facilmente se deslocar das suas aldeias isoladas para os centros mais desenvolvidos, aproveitando, assim, para comercializar o que a terra lhes oferecia em troca do suor com que o camponês humedecia os seus torrões.

Do cimo de um estrado, o que restava da família real tomou os seus lugares.

— É com especial aprazimento que venho aqui hoje, dia 23 do gracioso mês de Novembro, deste nosso pesaroso ano de 1908, inaugurar a linha do Vale do Vouga, prometendo, desde já, que a este primeiro troço, desde esta mui nobre localidade de Espinho, que muito prezo, e a não menos altiva Oliveira de Azeméis, se hão-de seguir outros, por forma a esta chegar a Aveiro o mais rápido possível. O rei não se esquece das suas gentes e o seu serviço é o bem público — disse o monarca, pouco expressivo.

Logo se seguiu um enorme júbilo por parte dos presentes.

— Viva o rei! Viva a rainha! Viva Portugal!

O povo não sabia, como hoje ainda não sabe, mas isto de inaugurar é uma coisa e entrar em funcionamento é outra. Portanto, não tiveram outro remédio senão esperar pelo dia 21 de Dezembro para apreciar o desempenho da magnífica máquina a vapor. Enfim, já vêm de longe estas práticas!

O rei, parece, veio a gostar particularmente daquelas terras beirãs. Quem diria!? Comentava-se, pelos lavradios, os fogosos encontros amorosos entre D. Manuel II e uma esbelta bailarina de cabaré francesa, no majestoso Hotel do Bussaco. Encomendado pelo seu pai, o rei D. Carlos I, e executado pelo reputado arquitecto italiano Luigi Manini, cenógrafo do Teatro Nacional de S. Carlos, foi, inicialmente, um pavilhão de caça, construído entre 1888 e 1907. Só em 1909 foi transformado em hotel, com toda uma ala para a família real, o que era aproveitado, e de que maneira, por D. Manuel II. Neste ex libris de arte neomanuelina, mais precisamente na luxuriante ala, denominada “Vila dos Brasões” ou “Aposentos do Pavilhão”, o rei mantinha escaldantes encontros amorosos, típicos de uma monarquia europeia em decadência.

A bordo do “Vouguinha”, assim carinhosamente baptizado o comboio da Linha do Vouga, não se sabia pronunciar bem o nome daquela cortesã, mas os folhetins achincalhantes dos republicanos não deixavam dúvidas: «Caros concidadãos, enquanto o português trabalhador se mata para ganhar o seu mísero sustento, o rei rebola-se, satisfeito, nos lençóis conspurcados pela mancebia em que se envolveu com essa duvidosa bailarina francesa, Gaby Deslys. Enquanto a Monarquia se afocinha no chiqueiro do deboche, o povo trabalhador luta, todos os dias, de sol a sol, por um naco de pão bolorento e um bocado de toucinho rançoso. Abaixo a Monarquia! Viva a República!»

D. Manuel II haveria de voltar, ainda em festa, uma última vez àquele paraíso verdejante. No dia 27 de Setembro de 1910, presidiria ali às comemorações dos cem anos da famosa batalha do Bussaco, ou Buçaco, como se apraz escrever hoje.

No dia 8 de Setembro de 1911, concluir-se-ia o último troço da almejada linha do Vale do Vouga, entre Albergaria-a-Velha, Sernada, Águeda e, finalmente, Aveiro. Houve festança da rija, com direito a um pezinho de dança, aproveitando os rapazolas para cortejar as moçoilas descomprometidas. Naquele dia, folgou-se das lavras e as gentes de Águeda acorreram em grande número à cidade de Aveiro, mais ainda porque a viagem era de borla. Vestidos a rigor com os trajes domingueiros, lá iam cantarolando as suas glosas, habituados que estavam a estas cantilenas que ajudavam a suportar o duro trabalho da jorna. No braço direito ou em cima de uma rodilha, não faltava a giga com o farnel para a janta, que por estas bandas significava almoço. Aliás, não se saía de casa de manhã sem comer um bom prato de sopa ou umas sopas de “cavalo cansado”, para dar rijeza ao corpo e fortalecer os músculos, bem precisos para dirigir o arado puxado por bois encorpados.

Por esta altura, D. Manuel II, a mãe e a avó, a velha rainha Maria Pia, já haviam partido para o exílio, a bordo do iate real Amélia, primeiramente para Gibraltar, de onde seguiriam para Inglaterra.

D. Manuel foi o 36.º e último rei português, após ter sido deposto em Outubro de 1910, com a revolução perpetrada pelo movimento republicano.

 

Mais de 100 anos volvidos e de quase 99 anos de República, como está esta linha, que viu desboroar-se uma monarquia gasta e incapaz, para ver emergir uma república promissora, mas nem por isso competente? Ontem e hoje, afinal, estão muito próximos de nós.

       

A Linha do Vale do Vouga

 

II Parte

 

 

Carlos pedira à mãe para andarem no “Vouguinha”, como carinhosamente as gentes da terra chamam ao comboio regional da Linha do Vouga. Tinha ouvido nas notícias que se comemorava, em 2008, os cem anos de existência daquela linha e, por isso, tinha ficado com curiosidade. A mãe, inicialmente, estranhou. Sabia que o Carlos gostava de comboios, pois já tinham feito vários percursos ferroviários e ele nunca mais se esquecera dos contornos do Douro até ao Pocinho, nem da Linha do Tua, com todas aquelas escarpas enormes em direcção ao rio. Contudo, durante praticamente todo o mês de Agosto não largou o raio do computador, sempre metido no messenger ou a jogar. Foi mesmo desgastante convencê-lo a sair de casa, para ir à praia da Barra, passear pelos palheiros da Costa Nova, comer uma tripa com ovos moles no “Zé da Tripa”, dar um passeio de moliceiro pela ria ou ir até S. Jacinto de ferry-boat. Todo o Verão tinha sido um massacre para o tirar da frente do ecrã do maldito computador. Esteve quase a desafiá-lo para uma caminhada pela Reserva Natural das Dunas de S. Jacinto, para poderem ver, entre outros animais, as cegonhas-brancas, os patos-reais, os ouriços-cacheiros, enfim, o que conseguissem observar ao longo do percurso arenoso e ornado com as nevadas camarinheiras. Todavia, recuou. Se se enfadava com um simples passeio até ao mar, nem valia a pena falar-lhe na Reserva. Mas tudo bem, não ia deixar que se apagasse aquele relampejo de acção que o filho estava a ter. Havia que aproveitar a ocasião e delinear um dia perfeito.

O despertador haveria de tocar exactamente às 7:15, tal como Carlos o havia programado. Tinha tentado, em vão, negociar com a mãe uma hora mais razoável, mas não tinha tido sucesso.

— Às 7:00 quero-te de pé, ouviste? — desferiu a mãe, implacável.

 Assim,  adiantara, propositadamente, quinze minutos para poder ficar na sorna mais um bocado. Depois, compensava com a agilidade em se vestir, despachando o pequeno-almoço e desleixando a lavagem dos dentes.

Com esforço, Carlos desvia o lençol da frente da cara e resmunga:

— Ora esta, mas será que o raio do garnisé não se cala com a cantoria? Mas que chatice!

Nessa altura, aproveitando o esforço que fizera para levantar a cabeça, decide rodá-la para indagar as horas, a fim de saborear mais umas horinhas de sono.

    Sete e ... meia? Caraças! Como é que eu adormeci? Estou tramado!

Ainda mal feito do choque, mas tentando reagir, mais por instinto do que com sentido, ouve, petrificado, a voz esganiçada da mãe:

— Carlos, já estás despachado? Carlosss! Já é a terceira vez que te chamo.

— Ah! Sim, mãe, só me falta lavar os dentes — balbuciou, tentando demonstrar uma firmeza na voz que não tinha na decisão.

— Olha, traz a tua mochila que está no sofá da sala e vem ter comigo à garagem. Hoje, se for possível! — atirou a mãe a seco.

Carlos lá se desembaraçou como pôde, à custa de um notório descuidado.

— Olha-me para esse cabelo, pareces um “rasto”.

— Não, mãe, um “rasta”.

— Vês, até tu o admites. Ai, não sei o que faça contigo! Bem, o melhor é irmos embora, senão ainda perdemos o suburbano para o Porto.

A senhora Matilde estava furibunda. Aquele rapaz cada vez mais parecia andar lerdo, despardalado. Bem lhe parecia que todas aquelas horas em frente ao computador lhe haviam feito algum mal.

— Olha-me para essa remela, Carlos! Ai, desgraçado, tu não me lavaste essa cara, pois não? — proferiu de olhos arregalados.

— Não, mãe, eu lavei a cara. Deve ser do computador, faz-me lacrimejar às vezes.

— Eu já te disse para me largares a porcaria do computador — terminou a senhora Matilde, em jeito de desabafo.

Carlos, por esta altura, evitando que a mãe o inspeccionasse, como é hábito nas mães, ainda pensava no que lhe tinha acontecido. Só havia uma explicação, caso não acreditemos em fantasmas, que era ele ter-se enganado ao acertar as horas do despertador.

— Mas que parvo que eu sou!

— Olha, ainda bem que o reconheces, porque eu cá tenho de ter uma paciência fenomenal para contigo.

Pois estava claro, preocupara-se tanto em marcar mais quinze minutos que nem sequer deu atenção às horas. Lá tinha ficado marcado 8:15. Um pensamento caiu-lhe como um relâmpago: “O pai chegou do trabalho às 6:00 e, a esta hora, está a dormir profundamente. Vai-me matar!”

— Acho que estou perdido, mãe!

— Ora, fico contente por saber que, ao menos, tens essa consciência. Eu bem digo, esse computador anda-te a pôr azoratado, rapaz — afirmou a senhora Matilde, lançando pequenos estalidos com a língua no céu da boca.

 Tentando pôr de lado aqueles pensamentos sombrios, encaminhou-se com a mãe para a estação de Aveiro. Haviam deixado o carro no antigo mercado abastecedor e, como tal, entraram na estação pela parte nova. O edifício mais antigo estava agora fechado, mas conservava, ainda, toda a sua imponência artística, sobressaindo nele os magníficos painéis de azulejos a retratar as vivências de Aveiro.

“Vai sair da linha número três o comboio suburbano com destino ao Porto São Bento. Atenção à sua partida.”

Matilde estugou o passo, com os bilhetes a balançar na ponta dos dedos. Carlos, cada vez mais contrafeito, arrastava-se atrás. Por fim, entraram na carruagem que se lhes mostrou mais próxima e, num baque, atiraram-se, literalmente, para cima dos assentos.

— Irra, foi por pouco! — silabou a mãe, tentando respirar por entre as palavras.

Um apito soou e o comboio amarelo começou a andar em direcção ao destino pretendido, Espinho.

Como facilmente poderão adivinhar, o Carlos, nem sequer ainda tinham passado Esgueira, já estava a dormir, com a cabeça encostada ao plástico do revestimento da carruagem. De modo que, não se incomodou com o cheiro pestilento da celulose de Cacia, nem com os odores químicos de Estarreja. Viu-se-lhe um ligeiro remexer de lábios, para engolir a saliva acumulada, ao passarem por Avanca, sob o olfacto a Nestum. Descerrou os olhos já em Cortegaça, depois de ter dado uma valente cacetada com a cabeça no vidro da janela. Sonâmbulo, deixou-se ficar a olhar para os veraneantes madrugadores, que, atléticos, se entretinham a enterrar os paus dos pára-ventos na areia húmida da manhã. Passada Esmoriz, num instante alcançaram Espinho. A estação aqui também cheira a novo. A linha, em todo o perímetro citadino, foi enterrada, pelo que a estação é subterrânea.

Mais uma vez, havia que apressar o passo, pois a partida do “Vouguinha” estava definida para as 9:26. Era, por isso, necessário fazer à volta de 300 metros até à desprezada estação da Linha do Vouga, onde iniciariam a nossa centenária viagem em via estreita, dividida em duas fases: a primeira, levá-los-ia de Espinho até Sernada do Vouga; a segunda, de Sernada do Vouga até Aveiro. No total, empreenderiam seis horas de viagem, embora houvesse duas horas de paragem obrigatória em Sernada.

À hora marcada, o comboio vermelho, adornado por inúmeros grafitis, fez a sua aparição, vindo de Leste. Mais uns minutos, e a máquina a diesel começaria a acelerar, depois de uns estridentes apitos, para apressar algum distraído ou para levar a apagar o cigarro, inconsolavelmente deixado a meio ainda.

À medida que a brisa do mar ficava na retaguarda, também o amontoado de habitações ia dando lugar a algumas árvores, cada vez em maior número. A linha era extremamente estreita, ladeada por, essencialmente, eucaliptos. Nos bordos da linha, crescia uma vegetação mais rasteira, sobressaindo as resistentes silvas. As passagens-de-nível eram muitas, por isso, ouvia-se, constantemente, a buzina ecoar, a avisar os condutores ou peões de que ali vinha o comboio, até porque a maioria das passagens não dispõe de guarda. Havia casas mesmo encostadas à linha, ou quintais que a ela se vinham encostar, lastimando a sua inércia e invejando aquele trovão fumegante. Noutras alturas, era o fumo negro da caldeira e as faíscas a saltarem da chaminé; agora é o fumo gorduroso da carburação. Semeadas pela paisagem, havia capelas, casas apalaçadas, animais a pastorear, alfaias agrícolas a laborar, pessoas nos seus afazeres.

Ao longo do trajecto, encontram-se as várias estações de comboios, bastante pitorescas, com as cantarias, normalmente, em pedra e as paredes pintadas de branco. Destacavam-se, ainda, os telheiros em madeira, encimados por telha lusa. Nalguns, podiam-se observar coloridos canteiros. Mas, como não há bela sem senão, nem todos estes edifícios de traça única estavam devidamente cuidados, sobretudo aqueles que fecharam as portas, quando as têm ou enquanto as têm. Situação sui generis foi encontrada em Ul, em que a estação há algum tempo que foi transformada em complexo turístico, “Refúgio d’ el Rei”, o que condiz com o local, bastante sossegado.

Entre Oliveira de Azeméis e Sernada, algo caricato acontece, o que vem comprovar a singularidade desta via. O guarda-freios, munido de uma manivela, sempre que o comboio se está a aproximar de uma estrada e abranda, salta da locomotiva para ir, apressadamente, fechar as cancelas. Com estas já cerradas, o comboio passa e pára mais à frente, à espera que o desenvolto manobrador levante as cancelas, de forma a permitir que os automóveis passem. O próprio Carlos, a determinado momento, também já saía do comboio para auxiliar o guarda-freios, correndo, de seguida, para a última carruagem. Noutros tempos, quando ainda existia a linha para Viseu, estas passagens de nível tinham guardas, que desapareceram com o esboroar da via.

Nas proximidades de Sernada, a paisagem enfeitiça os viajantes. Os contornos dos montes, as curvas e contra-curvas, são mais evidentes, com ligeiras subidas e descidas. Quando os montes se empinam, o comboio aninha num esforço de superação; alcançado um socalco recto, resfolega com sofreguidão. Antigamente, podia-se pôr a cabeça de fora e sentir o ar a bater nas bentas, como por aqui se diz, bem como a seguir os curvilíneos carris. Mas a segurança dos passageiros é prioritária, por isso não convém expor ao vento as frontes, não se vá apanhar com um frondoso ramo no meio do nariz. Não menos digno de registo, era o  rio Vouga, a acenar, incansavelmente, os viajantes. O vasto eucaliptal da serra da Gralheira impõe-se às vistas ávidas dos forasteiros. Noutras alturas, as mesmas vistas não salvaram a serra dos lastimáveis fogos. O Homem, por aquelas bandas, tem pouca presença. Ainda bem!

Por volta do meio-dia, o “Vouguinha” estancou na estação de Sernada do Vouga. À volta, algumas casas, salpicando os declives de vermelho. Perto, só mesmo a estação, com o seu típico café, onde se percebia um linguajar de emigrantes, a passar férias na terra.

Sernada do Vouga já foi, em tempo idos, uma importante estação ferroviária, uma vez que era a partir dela que se fazia a ligação à linha que seguia para Viseu. Com a desactivação desta via, a localidade perdeu importância e esmoreceu.

Carlos não adormecera durante toda a viagem. Em Aveiro, tinha-se arrependido mil vezes de ter incentivado a mãe para fazer aquela, pensava, enfadonha viagem. Todavia, aquele sono retemperador na Linha do Norte, ou se calhar a bordoada na janela do suburbano, havia-lhe dado um outro ânimo. A mãe, também, via-se, estava a apreciar de que maneira o passeio. Durante toda a viagem, não se cansou de lhe contar histórias dos seus tempos de meninice, quando também andou por aqueles lados, em Cabanões, em casa dos padrinhos. Muitas foram as aventuras no rio, com as bateiras de um lado para o outro, num constante rebuliço de garotada despreocupada. Por isso, mesmo que quisesse, Carlos não conseguiria dormir, nem poderia. Tinha dado a ideia, por isso devia respeitar a atenção, o carinho com que a mãe abraçou a proposta e se esmerou, praticamente sozinha, por organizar. Também sabia que a mãe, naquele Verão, estava sozinha. Bem, tinha-o a ele em casa, de férias, mas a verdade era que ele lhe tinha dado pouca atenção. O pai, coitado, trabalhava de turnos numa fábrica de cerâmica e, para mais, só poderia pôr férias em Novembro. Por essa altura, já ele estaria de novo na escola e a mãe a aturar a patroa no supermercado. Caramba, tinha sido bastante egoísta! E foi, ainda por cima, a irritante da Micaela que lhe fez ver esta situação tão óbvia, quando lhe disse que ele só tinha amor próprio. No primeiro instante, não ligou muito. As miúdas não correspondidas costumam lançar destas balelas, mas depois começou a matutar naquilo e a aperceber-se de que, afinal, havia algo na Micaela que lhe preenchia o pensamento: aquela mania de andar sempre a dizer “ya” e, pois claro, a frontalidade. Havia que mudar o rumo das coisas. Desta maneira, enquanto os amigos se banhavam no Quebra-Mar, ele teve a ideia de propor aquela viagem à mãe. Até ao final das férias, haveria de a compensar, mostrando-se mais presente e ajudando-a a ser feliz. Assim, nesta reconciliação altruísta, também ele se sentiria mais completo.

— Carlinhos, queres um “compal” ou um “ice-tea”? — perguntou a mãe, alegremente.

A mãe estava mesmo contente. Parecia que tinha feito um tratamento de rejuvenescimento à alma. Era bom, vê-la assim, a tratá-lo por “Carlinhos”, embora isso fosse motivo de chacota se algum dos seus amigos ouvisse tal baboseira. Já tinha quinze anos, mas a mãe via-o sempre como o seu menino. Diga-se, de passagem, que em Ílhavo se é sempre menino ou menina. Vai uma freguesa ao mercado comprar hortaliça e a vendedora trata-a logo por  “Eh, menina!”; está alguém a desenrolar o fio à meada da conversa sobre beltrano e sicrano e é ver as vezes sem conta em que é proferida a palavra “menina”: “Ai, menina, então tu não sabes que a galdéria da filha da minha vizinha só apareceu em casa às duas da madrugada? Olha, menina, eu não sei que educação é aquela. Pois não queiras saber, mas a rapariga é cá uma atolambada de primeira ordem. É bem feito, menina, que a mãe é uma ‘maniácola’. Eh, ‘chopa, escusas de ficar assim apalermada, porque as verdades são para se contar. Ah, eu cá sou assim, filha!”

Depois de almoçarem as sandes que a mãe havia preparado, foram dar uma volta pela aldeia. Pararam junto do fontenário, adornado com dois belos painéis de azulejos. De um lado a representação da ponte, do outro o comboio a vapor. Depois, seguiram em frente, mais uns 50 metros, e viraram à direita, em direcção à escola primária, hoje do 1.º ciclo. A rua era extremamente íngreme, mas nenhum dos dois se queixou. No final da mesma, ironizaram com a placa que viram, “Açôres 2 km”. Ora muito tinham andado, para mais com poderes só ao alcance do Messias, que se diz que terá caminhado sobre as águas. Ali, caminhava-se pela serra, o que não será, parece-me, menos difícil e, em recompensa do esforço, no alto da montanha, a capela de Santo Amaro, tal Leonardo de São Galafura, com uma vista panorâmica soberba. Muda-se o rio e o serpenteado, mas não diminui a obra do divino. Ao longe, via-se o rio Vouga, com alguns banhistas e pescadores. Também se vislumbrava nitidamente a ponte rodo-ferroviária que atravessa o rio, com os seus altivos arcos de pedra. Deve-se acrescentar, para os menos familiarizados com as atribuições dos santos, que Santo Amaro é o padroeiro dos ferroviários. No final, porque estava muito calor, refastelaram-se no café da estação com um corneto, ele de chocolate, ela de morango.

Às 14:10 o “Vouguinha” arrancou com destino a Águeda. Para trás, ia ficando a estação de Sernada, adormecida pelo calor soturno de Agosto. Com ela, amadornam também vários comboios que viram o seu tempo chegar ao fim. Para ali os enchutaram, como rafeiros desprezíveis, votados às artes do grafiti duvidoso. Nesta espécie de canil de latidos amordaçados, espera-se o abate.

Logo na primeira estação a seguir a Sernada, Macinhata do Vouga, que bela surpresa teve Carlos. O antigo comboio a vapor encontrava-se preservado e em exposição, podendo-se ainda observar os carris paralelos a um metro de distância. Pena que o “Vouguinha” não tivesse parado ali o tempo suficiente para explorar aquela máquina digna dos tempos do faroeste.

Embalados pelo ondular da carruagem, mãe e filho dormitavam, deixando-se levar ao sabor da cadência do comboio. Por vezes, quando as pálpebras estavam quase a cerrar-se, eis que um apito projectava um ligeiro salto no banco, com um novo ajuste do corpo às espaldas.

Eram 14:40. O comboio chegava, indolente, à movimentada estação de Águeda. Minutos depois, nova partida, agora com destino a Aveiro. Na paisagem, muitas árvores de fruto, pinheiros, eucaliptos, salgueiros; terras de milho, minifúndios, pastagens; o serpentinado das casas de habitação; duas crias de cegonha no alto de uma chaminé fabril, que deixou de laborar há muito. Cada vez mais casas, estradas, ruas, ruelas, caminhos. Finalmente, Aveiro. Um derradeiro apito.

“Deu entrada na linha número 5 o comboio regional da Linha do Vouga procedente de Águeda. Termina aqui a sua viagem.”

— Uf! Estou de rastos, mas acho que valeu a pena, não achas Carlos? — perguntou a mãe, arrastando as palavras.

— Sim, foi porreiro — respondeu o Carlos, um pouco alienado.

Sim, tinha gostado da viagem pela centenária Linha do Vale do Vouga. Continuava a preferir as paisagens durienses, mas descobriu, naquela jornada, pequenos mimos que jamais iria esquecer. De todos esses mimos, destacava-se uma revigorada cumplicidade entre mãe e filho, pelas histórias, pelos apartes, pelas despreocupadas conversas que se tiveram.

— Bem, mãe, amanhã, qual é o programa — atirou o Carlos, para lhe testar a resistência.

— Amanhã? Deixa cá ver, podíamos pensar em algo que envolvesse água, baldes, pás, areia, ...

— Boa, vamos curtir uma prainha? — respondeu prontamente.

— Não, vais-me ajudar a limpar a casa, que quero, antes de começar a trabalhar, deixar tudo impecável.

— Ui, mãe, agora é que me lembrei que já tinha combinado com...

— Olha, que engraçado, o teu pai deixou-me aqui uma mensagem no telemóvel por causa de um despertador que começou a apitar... Parece que está furioso contigo...

— Mãe, eu aspiro — assegurou, completamente vencido.

Nesta viagem[1], o bilhete foi só de ida. A volta acontecerá naturalmente, sem despertador.

 
 
 
Hélder Teixeira


[1] Ao longo da Linha do Vale do Vouga, existem 44 estações e apeadeiros.

 

 

 

 

 

© 2008 Todos os direitos reservados.

Crie o seu site grátisWebnode